CLAUSEM BONIFÁCIO Brasília: memórias e outros vazios

CLAUSEM BONIFÁCIO Brasília: memórias e outros vazios As partidas de futebol eram compromisso inadiável para o grupo de crianças que ocupavam as ruas desertas na W3 Sul, hoje uma das avenidas mais movimentadas da Capital da República. Era essa a realidade de Brasília na primeira metade dos anos 1970: local onde a poeira de cor avermelhada e as áreas ainda inconclusas nos lembravam de que a meta-síntese do Plano de Metas, anunciado por Juscelino Kubitscheck, necessitaria de alguns anos mais para se estabelecer em toda a sua exuberância modernista. No entanto, outro vazio surgiu, inesperadamente, sobre todos os desavisados das artimanhas do imponderável. Em contexto de exceção, no dia 21 de abril de 2020 a Capital da República fez 60 anos, mas não havia, de fato, muito a ser celebrado. Naquele início da pandemia de COVID-19, a data festiva submeteu-se à contingência sanitária mundial e Brasília, agora por razão atípica, emudeceu; o que era lugar tornou-se tempo e o tempo, memória. Habituado à linguagem do fotojornalismo, campo no qual atuou profissionalmente por muitos anos, Clausem reuniu seus equipamentos e colocou-se a registrar a cidade, a conferir aos locais outros vieses e intuir novos ângulos. A realidade visual estava posta, não obstante as múltiplas digressões que surgiram à medida que as mensagens, transmitidas indiretamente por intermédio dos signos, irrompiam imperativas. Por esse motivo, Clausem foi testemunha histórica mas também participante atento em um processo de construção de parte das memórias individuais e coletivas. Apresentou uma percepção mais cuidadosa do vazio e dos silêncios. Novos sujeitos, como um mendigo deitado no chão em busca do sol, tornaram-se a voz de muitos que foram postos à margem em processo contínuo e dinâmico no qual passado e presente intercambiam acontecimentos. A exposição Brasília: memórias e outros vazios é a tradução da percepção individual do fotógrafo a partir de uma realidade coletiva. É o que a historiografia contemporânea traz sob o campo da História Social e da História das Imagens. Trata-se de um importante rememorar dos acontecimentos de determinado período também por meio daquilo que não houve, do que foi perdido, das ausências. Clausem convida ao solilóquio contrito, mas não nos deixa sós. Seguiremos os caminhos apontados pelo historiador Marc Bloch que sugere interrogarmos o documento histórico e problematizarmos o tempo em sua duração. Nesse caso, agradeçamos, incontinenti, a Brasília em seus primórdios, quando o vazio exigia, tão somente, a paciência para vê-la desabrochar. Patrícia Yunes
Sexta no ateliê de Adriana Marques

Sexta no ateliê de Adriana Marques Somente há pouco percebi o quanto lhe cai bem a cor branca, Adriana.Saltou-me aos olhos o branco do sorriso e dos cabelos em diálogo harmonioso com a sua percepção da obra feita por um certo Sr. Velásquez. Mais evidente ainda o branco flagrado na vestimenta de trabalho, utilizada como suporte útil para as muitas pinceladas de cores inúmeras. Estaria ali o testemunho pictográfico de erros e acertos até que estivessem concluídas as obras? Seriam pinceladas tão diversificadas quanto os mundos pelos quais transitam seus interesses e habilidades?O pouco que vi ontem foi o suficiente para compreender as sutilezas e a grandeza de seu trabalho. Ansiosa, desde já, para ver o que a próxima exposição irá nos dizer…
A contemporaneidade nas veias de Ralph Gehre

A contemporaneidade nas veias de Ralph Gehre Dizem as boas línguas que com o avançar da idade se intensifica o hábito de narrar os acontecimentos. Quero crer que historiadores tenham, por imposição de ofício, a liberdade legítima para avançar ainda mais nas próprias reflexões… Dessa forma, em solilóquio quase contrito, meditei a respeito das obras do artista Ralph Gehre, em exposição na Alfinete Galeria. Uma bela curadoria com cerca de 30 obras de distintas fases da produção do artista, parte delas inéditas. Lembrei-me, em tracejar não muito preciso na linha do tempo, de uma das primeiras obras de Ralph que tive a alegria de adquirir. Era uma tela de tamanho médio, com sobreposição de tintas que denunciavam um movimento espatular solto. No primeiro plano, a figura em perfil entregava aos espectadores a habilidade de seu executor e a sensibilidade na escolha de cores e formas.Como pôde o artista transitar entre técnicas, temáticas e materiais tão distintos e com tanta propriedade ao longo dos anos? Quiçá encerre, em si mesmo, aquilo que o filósofo Arthur Danto pesquisou durante sua brilhante vida acadêmica: o pluralismo e o multiculturalismo, aspectos indispensáveis para compreendermos a Arte Contemporânea. Novas linguagens, outros suportes, emoção. Portanto, estou convicta de que Ralph Gehre tem a contemporaneidade nas veias. Menos por uma questão cronológica, mas por encarnar, corpo e alma, seus sintomas mais evidentes. Dei-me conta disso quando vi o autorretrato do artista, monocromático, cuja tinta rubra surgira a partir de um corte no dedo (2020). Com o material inusitado (sangue), dinamismo e destreza o artista contornou a imagem que lhe é tão familiar.Das acomodações de objetos distintos, tornando explícita sua verve neoconcreta, às produções de “jogos” modulares, tudo em Ralph Gehre evoca ousadia, confiança e liberdade, mesmo quando passeia pela arte dita “tradicional”. Talvez o próprio Ralph tenha respondido às minhas indagações iniciais ao afirmar: “O que posso dizer sobre meu trabalho já está dito nele”.Perfeito. Nada mais que a objetividade cortante e bem-vinda daquilo que realmente importa.
O mundo encantado de Valéria

O mundo encantado de Valéria Tic-tac, tic-tac, tic-tac…Eis que o tempo nos impõe reflexões incessantes…Mina de ouro para os artistas, foi entregue pelo próprio deus Cronos à mente inquieta e investigativa da artista Valéria Pena-Costa. Caminhar por entre os labirintos dos cômodos de sua casa/ateliê foi como invadir seu mundo inconsciente, repleto de objetos, animais taxidermizados, beleza e muita, muita inquietude. Minha querida amiga Chris, lembrou-me, durante a visita, que o tempo fora assenhorado pelo grande Quintana repetidas vezes e eu a recordar como trabalhou Dali com o objeto síntese (relógio), em formas derretidas graças à conhecida abordagem surreal. Em Valéria, no entanto, o tempo parece fugir às regras estanques ou à caixa dos movimentos artísticos “engessados”. Dialoga com o período ancestral de sua infância na qual os sonhos têm cores, formas e texturas diferenciadas.Em certo momento até pude escutar, com a mente, o coelho de Alice em sua famosa queixa “… é tarde, muito tarde, estou atrasado…”.Incrível como a arte de Valéria nos transporta através do tempo. Seus objetos, que também são nossos, traduzem algo de místico, etéreo, passível de muitas divagações e algo de prático, tangível, cruelmente real.É a arte, por meio de sua artífice, a aproximar mundos diferentes nos quais o tempo ideal e o tempo real transitam, confortáveis, no limbo da nossa imaginação.